Há mais de meia hora eu havia perdido
o rumo. Pelas indicações era só entrar a direita em todos os desvios. Fiz isso
e fui parar em uma jabuticabeira onde a estrada acabava que, por sorte (ou
azar), estava carregada. Agora eu, além de perdido em uma estrada de terra e
atrasado para a reunião na fazenda, estava com uma dor de barriga daquelas de
entupir o vaso. Procurava desesperadamente um matinho um pouco mais alto para
resolver o problema quando vi mais adiante algumas casas e numa delas uma placa
“Bar do Waldomiro”. Estava salvo.
Entrei no bar quase tirando a calça,
vi a placa indicando o banheiro e fui direto para lá. Dentro do banheiro
encontrei um ambiente inusitado. Existiam duas latrinas. Uma imunda como era de
se esperar e a outra impecavelmente limpa, com tampa no vaso e um rolo de papel
higiênico novinho. Fiquei ligeiramente desconfiado, mas me sentei na que estava
limpa. Após descarregar a tensão, notei que no chão do banheiro também havia
uma divisão. Metade limpo e encerado e outra metade até pastoso de tão imundo. Imediatamente
procurei a pia, que infelizmente estava do lado sujo e só era possível perceber
que um dia ela foi branca por causa de um canto que deve ter sido quebrado
recentemente. Saí do banheiro sem lavar as mãos e elas provavelmente ficaram
mais limpas do que se as tivesse lavado.
No bar o ambiente do banheiro se
repetia. Uma parte limpa e ascética onde as mesas eram cobertas com toalhas
brancas de renda, tão limpas que fariam inveja a qualquer propaganda de sabão
em pó, um vasinho com flores naturais e cuidadosamente arranjadas enfeitava o
centro de cada uma delas. As cadeiras antigas e em perfeito estado estavam
dispostas milimetricamente ao redor das mesas. Nas paredes, pintadas em um leve
tom bege, vários quadros com fotografias e paisagens de Portugal formando um
conjunto harmonioso e agradável.
Fazendo o contraponto, a parte suja
estava com o reboco caindo das paredes, mesas escoradas umas nas outras e
cobertas por uma camada de poeira vermelha que vinha da estrada de terra,
restos de comida nas mesas e no chão com moscas e baratas passeando livremente
entre sobre eles. Sentado numa cadeira de três pernas e escorado na parede um
homem aparentando idade avançada com a barba desgrenhada e amarelada pelo fumo
parecia fazer parte da mobília. Olhando para mim disse:
- Moço, si o sor quisé lava as mão
vai nu banheiro das mulhé que a pia de lá fica do lado do Wardomiro.
Não entendi muito bem, mas entrei no
banheiro feminino e a pia realmente ficava do lado limpo. Lavei as mãos, sai e
fui conversar com o homem atrás do balcão do bar.
- Boa tarde seu Waldomiro.
- ...
- Boa tarde. – Repeti
- Boa.
- O senhor não é o Waldomiro?
- Vige, Deus me livre i guarde moço.
- Por quê? Algum problema com o
Waldomiro?
- Não, mais eu num quiria tá nu lugar
dele di jeito ninhum.
Resolvi não alongar mais a conversa e
pedi um refrigerante. O homem me perguntou se eu iria me sentar do lado do
Waldomiro. Lembrando da pia do banheiro feminino deduzi que o lado do Waldomiro
era o limpo. Fiz um sinal afirmativo com a cabeça e sentei-me numa das cadeiras
no lado limpo do bar.
- O sor ispera um poquinho que o
Wardomiro vai pegá o refrigerante lá drento i já vem. Inquanto isso, si o sor
quizé, pode iscoiê arguma coisa pra cume.
Comecei a prestar atenção no balcão
que, ao contrário do bar, era inteiro sujo. Dentro de uma estufa ensebada pude
ver através de um vidro quebrado alguns salgadinhos que pareciam ter sido
fritos em óleo lubrificante usado e colocados para secar sobre uma poça de
graxa, além de um solitário pastel que deve ter sido utilizado como travesseiro
por anos a fio antes de ter sido colocado em exposição na estufa. Ao lado da
estufa dois potes grandes, um com ovos cozidos vermelhos e amarelos sendo que
dos amarelos eu não poderia afirmar com certeza se haviam sido tingidos ou se eram
simplesmente ovos brancos que já haviam apodrecido. No outro pote as sardinhas
escabeche pareciam estar lá há tanto tempo que em mais uma semana no máximo
elas ressuscitariam e voltariam a nadar dentro do azeite. Esta visão e mais o
fato de que uma barata passeava impunemente pelo balcão tiraram definitivamente
de minha cabeça qualquer impulso gastronômico que pudesse ter aparecido.
Quando olhei para a frente estavam
dispostos sobre a mesa uma garrafa de refrigerante gelado, um copo que de tão
transparente quase só era possível enxergar sua base e um pratinho de metal que
parecia um espelho com dois bolinhos fritos e de aparência tão agradável que
pareciam ter sido feitos pela minha avó.
- Quem colocou isso aqui? –
Perguntei.
- O Wardomiro ué!
A naturalidade da resposta foi tão
grande que não tive reação para argumentar que ninguém poderia ter chegado
perto da mesa sem que eu percebesse. Me enchi de coragem e fiz a pergunta:
- Quem é o Waldomiro?
- Era moço! Era! O Wardomiro era o
antigo dono do bar. O sor num vai cume us bolinho de bacaiau? Óia que eles são
uma dilicia.
Enquanto eu comia os bolinhos, que
realmente eram deliciosos, ele me contava a história do Waldomiro. Um português
que há mais ou menos 20 anos chegou no povoado, comprou um terreninho e
construiu o bar. O bar do Waldomiro ficou famoso em toda a região,
principalmente pelos bolinhos de bacalhau e pela mania de limpeza do dono. Os fazendeiros faziam fila no bar com suas famílias para saborear a bacalhoada e as
outras iguarias do Waldomiro. Até que um dia, desiludido por um amor não
correspondido e com saudades da sua terra natal ele resolveu vender o bar e ir
embora. O José, que é o atual proprietário, tinha acertado todo o negócio e
estava indo pagar o Waldomiro quando soube que ele tinha sofrido um “piripaque”
e morrido. Como o negócio estava todo acertado e o Waldomiro não tinha família
o José pagou as despesas do enterro e ficou com o bar. Mas, como disse o José, o
Waldomiro nunca largou o bar, ou pelo menos a metade dele.
- E você não tem medo? – Perguntei
- Eu não, ele nunca mi feiz mar
nenhum, i inda proteje nóis.
Ele me contou então que já tinham
tentado assaltar o bar duas vezes. Na primeira ele virou para pegar o dinheiro
no caixa e quando desvirou o ladrão estava morto. Caído no chão, boca aberta e
mais pálido “qui as tuainha do Wardomiro”.
- Us médico dissero qui foi u
coração.
- E da outra vez?
- Da otra veiz os revorve que eles
tava sigurando sumiru da mão deles. Eles ficaro tão apavorado qui disandaro a
corre.
- Nunca veio ninguém estudar esta
situação?
- Veio uns pessoar das faculdade,
ficaro tudo ispantado mais nun vortaro mais.
Achei a história toda muito
esquisita, perguntei quanto era a conta e fui entregar o dinheiro para o José.
- Dexa incima da mesa qui esse é do
Wardomiro i eu num mexo.
Coloquei o dinheiro em cima da mesa e
perguntei ao José o caminho para a fazenda que eu estava procurando. A reunião
já deveria ter terminado, mas eu precisava passar por lá. Após ouvir as
explicações olhei para a mesa que eu tinha usado. Ela estava limpa e com a
tolha trocada. Reparei também que o homem que estava sentado do lado sujo havia
sumido e pensei que no fim toda esta história era uma armação para tirar
dinheiro dos trouxas, uma vez que eu não tinha notas menores e havia deixado
mais do que o dobro do valor da conta sobre a mesa e não tinha visto o troco.
- Tchau José! Tchau Waldomiro! – Falei em tom jocoso.
Se eu não fosse uma pessoa racional
poderia jurar que, além da resposta do José, pude sentir uma mão fria dando
dois tapinhas no meu ombro. Apressei o passo e entrei no carro. Quando fui
pegar a chave no bolso encontrei algumas notas e moedas que eu não havia
colocado lá. Contei e era exatamente o troco da conta.
Saí levantando poeira com o carro e
não olhei para trás. Talvez com medo de ver o Waldomiro varrendo o seu lado do
bar.