Abri minha primeira empresa aos dezessete anos. Precisei ser emancipado para poder abri-la. Depois dessa foram mais cinco. Não tive uma startup. Naquela época, quando nos perguntavam o que fazíamos da vida, a resposta era “tenho uma empresinha”. À resposta seguia um olhar de desaprovação do perguntante. Sou dessa geração. A dos que empreendiam na marra.
A primeira nem conto como empreendimento. Muita vontade de fazer acontecer, pouca competência para realizar e nenhuma direção a seguir. Nas outras tive mais cuidado. A cada nova empresa, a competência ampliada pela experiência transformava aquela “naquela”. Três não deram certo. Duas funcionaram.
Assim passaram trinta anos. Empreendendo. Não bamburrei, como diriam no garimpo. Não virei unicórnio, como dizem atualmente. Mas vivi bem. Casei, separei, casei. Criei os filhos em um país onde tudo é pago duas vezes. Uma para o governo. E outra para receber do privado o serviço que foi pago ao governo. Comprei e vendi casas e carros. Fui a parques de diversões. Corri ralis de regularidade. Tirei férias. Viajei para a praia e para a montanha. Fiz cruzeiros. Visitei museus. Li livros. E tudo o mais a que todos deveriam ter direito.
Achei que tinha acumulado experiência suficiente para mudar o mundo. Resolvi empreender na política. Fui candidato a cargo público. Experiência que deveria ser obrigatória como formação básica de cidadania. Me tornaram Presidente da empresa de tecnologia de Campinas. Onde me convenci que era possível mudar o mundo. Virei Diretor da empresa de tecnologia de São Paulo. Onde percebi que todos querem mudar o mundo, mas cada um para o seu jeito. Voltei para outra empresa pública de Campinas. Onde finalmente entendi que não querem que o mundo mude. Quatro anos ótimos e dois péssimos.
Trinta e seis anos de trabalho. Ininterruptos. Excetuando as merecidas férias, é claro. Já poderia ter me aposentado. Se tivesse me preocupado mais com o tal do INSS quando tinha meus “vinte e poucos”.
Mas não foi só isso. Durante o caminho empreendi em associativismo também. Participei da fundação e da gestão de quatro entidades. Que existem até hoje.
Tive todos os cargos possíveis. Conselheiro. Coordenador. Diretor. Gerente de projeto. E uns tantos outros que nem lembro mais. Alguns sem remuneração. Outros remunerados. Outros com receita atrelada ao sucesso da operação. Em um determinado momento fui, com muito orgulho, “Consultor das Nações Unidas”.
Fui responsável por linhas de financiamento e fomento. Por mais de trinta entidades espalhadas pelo país e por escritórios espalhados pelo mundo. Ao longo de pouco mais de vinte anos montei operações no exterior. Organizei feiras e eventos. Levei missões empresariais para quatro continentes. Dei palestras. Português e inglês. Sobre tecnologia brasileira. Para pequenos grupos. E em auditórios com mais de quinhentas pessoas.
Fui conselheiro em diversos conselhos públicos ligados à tecnologia. E, novamente, com orgulho, do endowment da Unicamp. Minha Alma Mater. Onde também fui Presidente da associação de empresas geradas no entorno da Universidade. Mais popularmente, as “Filhas da Unicamp”.
Foi o que fiz. Cinquenta e seis anos de trabalho. Tudo bem, trinta e seis mais vinte. Concomitantes. Uma carreira bem-sucedida. Ao que me propus para esta vida, de aprendizado sem arrependimentos, uma carreira da qual tenho orgulho.
Como disse, não bamburrei. Mas acumulei algum patrimônio. Aprendi uma enormidade de coisas. A tal ponto de concordar com Sir Paul quando ele diz “memory is almost full”. Conquistei algumas, poucas, amizades verdadeiras. Com elas, mais do que portas, deixei caminhos abertos. Enormes.
Mas a desilusão com a política deixou um “e agora?”. Amargo. Travado no fundo da alma.
Tentei. Timidamente. Mas com apoio. O mundo corporativo. Ledo engano. Como poderia alguém. Daquele tão acirrado mundo. Se interessar por um cinquentenário com currículo heterodoxo.
Resolvi então me dar algo que, como no samba famoso, “nunca vi, nem comi, eu só ouço falar”. Não, não foi caviar – que gosto, mas não muito. Foi o tal do sabático! Programei as finanças para um ano sem receitas. Dava com folga. Só esqueci de (ou achei que não precisava) comunicar ao mundo a minha decisão. Erro um?
Mas que raios tem tudo isso a ver com o título deste alfarrábio de parcas páginas?
Tudo. Quem viver, ou melhor, quem ler, verá. Mas ainda é necessário circunvegar um pouco o tema.
Necessário é. Para tratar da pecúnia. Antes, porém, reforço que a necessidade advém tão somente da insana importância que lhe é atribuída. Insana a ponto de a tal ser referida por poetas, e outros desiludidos como eu, pelo termo “vil metal”. Referência à desgraça e infelicidade. Suas reais consequências. Atribuída por quem, alma rasa, ainda não entendeu a que veio. E acredita serem os cobres, o motivo. Desculpe gastar tempo com eles. São néscios. Porém existem. E emitem opiniões.
Nunca gostei dele. Desde criança. Hoje o classifico como “mal desnecessário”. Porém o mundo, ainda, acredita na sua imprescindibilidade. Como nesse mundo eu, ainda, estou, aprendi a conviver com ele. A relação, de minha parte, é de respeito e temor. Como temo, controlo. Com todo o rigor das casas decimais. Assim o faço há mais de 30 anos. Sei o que tenho. O que tive. Quanto gastei e em que. Sei quanto gastarei. E quanto precisarei. Novamente, com a precisão dos decimais.
Sobre previsões, com certa arrepsia ao todo da teoria, sempre me fiei no corolário Keynesiano que diz “o empregado gasta o que ganha e o empresário ganha o que gasta”. Assim fiz. A vida toda. Queria um carro? Era só comprar. Financiado. E correr atrás do tostão. Casa? Assim foi também. Sempre funcionou. Com arrepios nos conviventes. Mas sempre funcionou. Contas a pagar? Sempre tive. Insolvente? Nunca fiquei.
É mister clarificar que sempre considerei somente o meu amealho nos cenários. Ajuda e complementação sempre foram muito bem-vindas. Em certos momentos pregressos, absolutamente indispensáveis. Especialmente nas grandes navegações. Nos planos curtos, porém, renda única. Assim sempre foi. Para experimentar o tal novo restaurante. Viajar para a montanha para desestressar. Levar a família ao parque de diversões e ao cruzeiro cisplatino. Ou para comemorar o cinquentenário no velho mundo.
Não gosto mesmo do dito cujo. Portanto, nunca me apeguei. Precisa cobrir o descoberto? Leve. Precisa de ajuda na festa? Tome. Na dor? Aqui está, ainda com mais presteza. Trocar de carro? Fique com o que mais gosta. Acabou o combustível? Pegue o meu, enquanto aproveito e vejo óleo, pneus etc. Adquiriu – certo, sugestão minha – um patrimônio que lhe come a receita? Cubro as parcelas que faltam. E foram muitas. Parte expressiva do patrimônio. Sei por que tenho tudo contabilizado. Nos decimais. Quero o que? Absolutamente nada. Nem mesmo reconhecimento. Como, reza a lenda, disse um Presidente efêmero “fi-lo porque qui-lo”. Sem ardil. Nada quero mesmo. Já o fiz saber aos únicos a quem realmente interessa. A prole.
Chego ao ponto da segunda parte desta ciranda ao redor do tema. Quanto preciso hoje? Caraminguás. O que mais eu quero que necessite de arame? Quase nada. Acomodei-me. Desconsiderei necessidades e ignorei desejos do bem-querer. Erro dois?
Mas que raios, trovões e cargas d´água têm as quase duas laudas a ver com o dístico da resenha?
Como toda estrutura que quer ser estável, é necessário um terceiro pilar para que o mote feche.
O contexto inicial serviu para deixar claro que trabalhei muito. Que tive uma carreira (ou várias paralelas). O seguinte mostrou que fui bem remunerado. Que já tive bens e propriedades. Tenho plena consciência de tudo isso. Mas era necessário sobreluzir. Para os sáfaros.
Era preciso. Para enunciar o óbvio ululante. Parafraseando Nélson, que me parece não ter ululado.
Eu tinha o direito de escolher o que fazer com as, talvez, duas – três? – décadas que me restavam nesta vida. Como fiz em várias inflexões ao longo dos anos. Eu poderia até me aposentar e parar de trabalhar.
A escolha era minha. Mas eu deveria ter compartilhado. Com quem amo. As dúvidas. O processo decisório. A decisão. E, principalmente, o trato das consequências. Erros um e dois agravados.
O terceiro pilar surge durante o tal do sabático. Minha mulher. Brilhante gestora de recursos humanos. Com sólida e em ascensão carreira corporativa. Recebeu proposta para assumir uma operação internacional. Com o fascinante “Ásia-Pacífico” no título da posição.
Se, como dizem, Deus é de fato brasileiro, eu não faço a menor ideia. Mas que o Universo tem uma quedinha por mim, eu tenho certeza. A posição da proposta era em Melbourne. Cidade que sempre admirei. Amiúde na disputa entre as três melhores cidades para se viver do mundo. No único continente habitado que eu ainda não havia visitado. Mas o mais importante. Lar do bicho que, de longe, é o que eu mais admiro. O ornitorrinco. Ou, como se diz down under, the platypus.
Regozijo extra. Ganhamos da empresa uma viagem. Dez dias com tudo pago. Para “conhecer a cidade e ver se gosta”. Irrecusável, certo? Como supostamente disse Júlio há mais de dois mil anos: veni, vidi, vici. Será em Melbourne nosso novo cantinho.
Decisão, quero crer, com meu apoio, consolidada pela parceira de vidas. Ainda no avião de retorno. No mesmo avião. Ao lado de uma mulher linda. Inteligente. Afetuosa e afável. Que acabara de galgar, apoiada tão somente na própria competência, vários patamares na sua carreira. Tomei a, sem dúvida, mais importante decisão da minha vida. Infelizmente, ao mesmo tempo, agravei ainda mais o meu erro um.
Sobre o Pacífico. Com perdão do trocadilho. Na plenitude da paz com minha existência. Acreditando estar no caminho de ajuste do meu carma. Resolvi. Assumiria o papel de esposo. De marido. De dono de casa. Como se dizia antanho, seria “do lar”. Sorri. A trava no fundo da alma desapareceu. Fiquei aliviado. Confesso que chorei um pouco. Culpei o filme que passava. Não me lembro que filme era.
Novamente errei. Não comuniquei minha decisão. Dessa vez, porém, não ao mundo. Que, a mim, pode dirigir-se à danação eterna. Esqueci de, mais do que comunicar, combinar a decisão com o amor das minhas vidas.
Para Naarm – a Melbourne aborígene – fomos. Ela para assumir a posição de executiva com status internacional. Eu para assumir o papel que me propus.
E assumi. Procurei casa. Equipamentos de limpeza e manutenção. Móveis e utensílios. Roupa de cama, mesa e banho. E tudo o mais necessário para estabelecer um ambiente agradável para nós.
Ela, eu e o filho que gosto de chamar de “mais um”. Tenho dois naturais e ganhei o “mais um” quando nos reencontramos. Ele, então com cinco para seis anos, foi morar conosco. Filho se tornou. Como pai, mesmo que adjunto, ajudei-o a procurar escola. A comprar material escolar. Assim como ajudei-o a se tornar uma pessoa íntegra. Completa.
Só o que não fiz para nosso setup foi escolher o carro. Isso era função dela. Aliás, quando digo procurei é porque eu só procurei mesmo. As pequenas coisas. Panelas, utensílios de limpeza etc. Na minha alçada de decisão estavam. As grandes decisões eram dela. A escolha da casa. Dos móveis. Do colchão. E assim foi.
Casa montada. Organizei o dia a dia. Cozinhei – o que sempre gostei. Fiz a limpeza da casa – o que poucas vezes tinha feito e só na república. Lavei as roupas – o que nunca tinha feito. Organizei as listas de compras. Mantive abastecidas a despensa e a geladeira. Obviamente com ajuda e apoio dela e dele. Como convém à qualquer família moderna. Mas a responsabilidade era minha.
Tudo funcionou bem. Inclusive durante o ano que durou o mal da segunda década deste século. Aquele que carregava o ano anterior no nome.
Funcionou bem no ano seguinte também. Pelo menos para mim. O que eu não sabia é que, naquele momento, o mundo, ao invés ir à danação, já me julgava e condenava.
Agravei então o meu erro dois. Me acomodei. Entrei na tal da zona de conforto.
Conforto desconfortável. Talvez pela energia ruim do mundo me julgando e condenando à revelia. Não, eu não falei. Mas também ninguém. Nunca. Me perguntou. Ou talvez pela distância que eu mesmo tomei do Universo. Aquele mesmo. Que sempre me apoiou. E que, como já disse, tem uma quedinha por mim.
Foram dois anos de deterioração. Física, mental, estrutural. A deterioração chegou à alma.
O eu que sobrou apartado do eu que sou. O eu que de fato era naquele momento perdeu tudo. Perdeu o carinho. Perdeu a admiração. Perdeu a capacidade de amar. Perdeu a virilidade. Perdeu a vontade de ser.
Pior. Aquele eu corroeu a única fundação que sustentava meu propósito desta existência. Corroeu, talvez de forma irreversível, o amor que não tenho dúvida ela sentia por mim.
A minha acomodação me incomodou. Muito. Embora no começo eu não percebesse claramente. A minha companheira ficou incomodada com meu incomodo e com minha acomodação e, pior, o mundo, embora eu ainda não soubesse, me achincalhava.
Este foi o terceiro pilar. Minha carreira – pilar um. Meu relacionamento com a prata – pilar dois. Quem eu queria ter sido X quem fui – pilar três.
Agora sim. O título.
O que a frase lá em cima tem, de fato, a ver com tudo isso é que, consequência ou não dos erros um e dois, recentemente me descobri. Insciente. Sendo discriminado. Pelo que há tantos anos as mulheres combatem apropriadamente e enfaticamente. A discriminação de gênero.
Ela falou o que sentia. O mundo começou a questioná-la. Por mundo entenda pessoas com as quais me indispus no período do eu fugidio. Por mundo entenda pessoas que nunca se importaram em me conhecer melhor. Por mundo entenda pessoas que sequer me viram, mas desandaram a vaticinar. Por mundo entenda pessoas que repostam frases prontas pregando a felicidade alheia. Por mundo entenda pessoas que passam a vida a procurar por algo que dessabem. Por mundo entenda parvos sem propósito que, sustentados no cabedal das redes sociais, sequer sabem quem são. Por mundo entenda família próxima e colegas.
Importante. Por mundo não entenda amigas. Amigas e amigos não questionam. Apoiam.
O que questionavam? Os três pilares. Obviamente. Por isso a circunavegação.
Como pode alguém ficar quatro anos sem trabalhar? Questionavam os incautos. Leve.
Não sabem que sempre mantive atividades no Brasil. Sem remuneração. Mas nunca parei. Não sabem que há dois anos toco uma nova empreitada. Minha primeira startup. Que agora começa a ser rentável. Mas, mais importante. Como assim sem trabalhar? Então as donas de casa, as “do lar” não trabalham? Não sabem o que aqui fiz. Não precisam saber. Quem precisa, sabe.
Você viveria muito mais confortável sem ele. Concluíram os que só dão importância ao mealheiro. Pesado.
Não sabem o que foi feito com o cascalho deixado em Terra Brasilis. Nunca se importaram em saber. Não precisam saber. Quem precisa, sabe.
Virou um peso morto. Vaticinaram colegas. Muito pesado. Denso. Cruel. Energia de anjo caído. Lúcifer.
Não sabem o que passamos na distância em que estamos. Não consideraram o carinho. Que nunca deixou de existir. O apoio mútuo nos momentos de solidão. As agruras divididas na bancada da cozinha. As alegrias vividas no cantinho. As confissões escancaradas no leito. Nunca entenderão o conforto, mesmo nos tempos tortuosos, de ter uma alma aquecida ao lado. Disponível. Pronta. Não precisam saber. Quem precisa, sabe.
Certo. Errei também. Aqui já esbugalhei. Pedi perdão pelos erros. Porém, reforço, meus erros foram dois. Erro um – não ter conversado corretamente com a única pessoa no universo com quem deveria ter me acordado. Erro dois – não ter sentido antes o incomodo da acomodação do eu que nunca deveria ter sido.
Não errei pelas decisões que tomei. Se tudo se repetisse, mesmo sabendo o que agora sei, repetiria as decisões. Nunca os erros. Só as decisões. Por corretas e acertadas que foram.
Finalmente. Vejo as mulheres de amigos que cá fizemos. Advogadas. Veterinárias. Tantas outras que largaram suas profissões e carreiras na terra natal. Estão aqui a apoiar a jornada do marido em Terras Australis. Merecidamente são vistas com bons olhos e admiração. Tanto desprendimento. Tanta força de vontade. Exemplos da força feminina. Da capacidade de adaptação. Do desprendimento pela família. Da resiliência.
O marido que faz o mesmo vira um imprestável. Um peso morto. Uma dejeção.
Eis ai o título. Eis o machismo feminista.