Réquiem Entusiasmado
Lembrar de quem passou é a minha forma de rezar.
Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Eu acredito que a melhor homenagem que podemos fazer a alguém que já passou é lembrar. Quem foi, continua a jornada. Quem fica, mantém a história e o legado... lembrando. Lembrar de quem passou é a minha forma de rezar.

Mas o que se diz neste momento a quem fica? Muitos tentam a simpatia (do grego sypatheia: syn, "junto" + pathos, "sentimento"), ou seja, juntar os sentimentos e ser solidário. Alguns ficam apáticos (da mesma etimologia, sem sentimentos - originalmente, sem sentimentos ruins). Outros tentarão a impossível empatia (interiorizar o sentimento alheio). Impossível, pois cada ser vivente sente o que viveu e vive o que sente.

Emilinha Borba dizia "Quem parte leva saudades de alguém, que fica chorando de dor". Quando as palavras faltam, sempre podemos recorrer a histórias de outrem, contos de antanho ou simplesmente à mitologia popular. Os conhecimentos das vovós ou dos papais (hoje vovôs) e até mesmo os nossos (futuros vovôs e vovós) são fartos de significados e imagens.

Os gregos entendiam que todos os mortos partiam para o Hades, espaço que tinha o mesmo nome do deus que o guardava, ao lado de Perséfone. O local era (é!) de extrema importância, tanto que sua guarda foi confiada ao irmão de Zeus e fica nos "subterrâneos", cercado por rios, os quais somente aos mortos é dado o direito de atravessar. Lá, como em tantos outros Hades de mitologias mais recentes, todos conservam a forma humana, embora não tenham mais corpo ou matéria. Cultos em casa e rituais cuidadosos eram feitos com muito esmero, para que os mortos pudessem tomar a barca de Caronte e atravessar o rio Aqueronte, o mais importante do Hades, dirigindo-se à porta de diamantes guardada por Cérbero, entrada triunfal do espaço onde permanecerão vagando pela eternidade. Mais tarde os "subterrâneos" foram transformados no inferno de Dante, Cérbero virou o guardião de sua porta e o portal de diamantes foi transferido para o céu, onde corpo e matéria também não são necessários e todos continuam a vagar, com sua forma terrena, pela eternidade.

Conta-se que, à beira da morte, Alexandre teria convocado seus generais para lhes fazer três pedidos: 1. que seu caixão fosse transportado pelos melhores médicos da época; 2. que todos os tesouros por ele conquistados fossem espalhados ao longo do percurso até o seu túmulo e 3. que suas mãos fossem deixadas fora do caixão, à vista de todos, balançando no ar. Quando indagado por que esses desejos tão estranhos ele disse: "Quero que os médicos carreguem o meu caixão para demonstrar que eles não têm poder sobre a morte. Quero que o chão seja coberto pelos meus tesouros para que todos entendam que os bens materiais aqui conquistados, aqui também permanecem. Quero que minhas mãos balancem ao vento para que se veja que de mãos vazias viemos ao mundo e de mãos vazias partimos."

Gregos, macedônios, romanos, muçulmanos, católicos, espíritas, budistas, agnósticos e tantos outros. Todos têm alguma crença. Mesmo os ateus, que só creem em sua própria descrença. Eu creio em tudo isso, ao mesmo tempo, aqui, agora, dentro de mim. Eu creio em meu "entusiasmo" - do grego en + theos, literalmente "em Deus", ou na inspiração pela presença do Deus que está em mim. Assim como os oráculos de Delphos, eu me sinto bem e completo quando sinto Deus dentro de mim, ou quando estou entusiasmado. Morrer para mim é desprender-se da casca, para aproximar-se completamente, totalmente, deste Deus que já habita em mim.

Pessoas de boa índole tem o caminho aberto nas passagens. Se gostar de cachaça e souber fazer caipirinha, ainda recebe na entrada um passe que permite usar o acesso especial, sem ter que ficar na fila (eu, com certeza, acredito muito nisso!). Pretendo ficar aqui por algum tempo ainda (pelo menos o mesmo tanto que fiquei até agora), mas já escolhi a música que representa o que acredito ser a passagem ideal: The End of The End do Sir Paul McCartney.

Enquanto por aqui permanecemos, tentando aprender muito e ensinar um pouco, o que fica dos que por nós passaram são as memórias. Só as boas pois as más, o pouco espaço que temos (memory is almost full) se encarrega de despejar. Mas ficam também os cheiros. Esses nunca esqueceremos. O cheiro do colo do pai, quando ainda bebês dormíamos a sono solto. O cheiro do filho dormindo profundamente sobre nosso colo. O cheiro do dia em que ouvimos "papai" pela primeira vez. Do primeiro brinde de pai para filho. O cheiro do abraço agradecido e orgulhoso quando se conquista algo muito importante para um e, eventualmente, nem tão importante para o outro.

Por enquanto aqui seguimos, mas é importante saber, como nos ensina a tal marchinha, que "Está chegando a hora. O dia já vem raiando meu bem e eu tenho que ir embora.".

Caro amigo, beijos, abraços e tudo o mais que podemos dar enquanto aqui estamos e suporte físico temos é o que posso lhe oferecer quando lhe encontrar. Alegria, conforto e especialmente paz é que o lhe passo agora e sempre pois entrelaçadas estão nossas existências eternas. Luz é o que ofereço para quem foi, para que encontre e siga o seu caminho.

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