Uma forma de (re?)pensar a gestão pública
É necessário redefinir o Norte Verdadeiro da Gestão Pública.

Este documento não se propõe a ser um texto acadêmico, mas tão somente a ser uma visão específica sobre o tema. A minha visão específica. Portanto, embora esta visão tenha sido construída com base em minha experiência na gestão pública associada à textos e estudos, não farei citações bibliográficas ou reflexões sobre fontes, origens ou embasamento teórico da minha visão.

O Problema

A causa raiz do fracasso do modelo atual de gestão pública é o foco incorreto.

O foco é sempre na figura política central. Em uma cidade, o Prefeito. Antes das eleições querem saber quem é, de onde veio, o que já fez, se é simpático,  inteligente... Após a eleição, quem serão seus secretários e assessores, com quem ele tem conversado, quem são os seus aliados... Durante o governo os assessores querem saber o que ele quer que seja feito com relação a determinado tema, qual é a decisão dele sobre outro tema, se ele está gostando da atuação individual, a população se e quando ele dará atenção à determinada situação, se ele é honesto...

A centralização e personificação exageradas, além de perpetuar a cultura de super-heróis ou “salvadores da pátria”, acaba por transformar políticos que tinham contato com a população em figuras de pedestal. Incialmente eles são deliberadamente mantidos afastados do contato diário pelos seus assessores, para “preservar a imagem”. Depois, vaidade humana, acabam gostando da subserviência, da posição de autoridade, do lugar reservado nos eventos que só começam quando ele chega, não importando o tempo de atraso, e onde os participantes ainda agradecem a sua presença, como se não fosse essa sua obrigação principal. Se o político já tem esse viés prepotente e autoritário em sua índole o quadro fica muito mais grave.

O cidadão é sempre o mesmo, pode até mudar de local físico, mas é e sempre será o cidadão. Não é eleito ou reeleito a cada 4 anos, não espera que os problemas sejam resolvidos dentro de um mandato e não tem qualquer obrigação de entender as particularidades e complicações da administração pública.

O cidadão, assim como a humanidade, é diverso e se recicla. Pode ter muita instrução ou nenhuma instrução. Muito dinheiro ou muitas dívidas. Saúde perfeita ou ser totalmente dependente do sistema de saúde pública. Em determinado ponto da vida pode depender do sistema público de ensino para seus filhos e em outro momento estar muito mais preocupado com o emprego dos filhos. O que também acontece com relação à Saúde. Alguns são muito preocupados com a causa animal, outros com sustentabilidade e outros ainda com a economia, mas sem se descuidar desta ou daquela causa. Acompanhar cada um desses cidadãos, seus anseios momentâneos e suas angústias de longo prazo é, per si, um trabalho hercúleo e de muito difícil execução, que requer mais do que vontade, requer o dom da política.

O conjunto de cidadãos é a cidade. Se a existência do cidadão é muito maior do que os quatro anos de um mandato, a cidade é, ou deveria ser, perene. É absolutamente impossível sequer endereçar os problemas de uma cidade em quatro anos, até porque os problemas ressurgem e novos problemas aparecem.

Por que dizem que todos os políticos mentem? Porque eles se propõem a resolver problemas que não tem solução. Qualquer um que disser que vai resolver “o sistema público de saúde” estará, sempre, mentido. A saúde, assim como a educação, a segurança, o meio ambiente e todas as outras áreas que compõe uma cidade mudam e assim acontece porque as condições climáticas mudam, porque coisas inesperadas acontecem, porque a humanidade evolui... Ou seja, os problemas de uma cidade não podem ser analisados, medidos, estruturados e resolvidos em ciclos de quatro anos.

O pior cenário neste aspecto é quando passados os quatro anos quem entra diz que o anterior fez tudo errado, desmonta o que existe e recomeça “agora do jeito certo”, só para deixar tudo inacabado para um novo ciclo improdutivo de quatro anos.

Essa estrutura egocêntrica tem ainda um efeito colateral perverso. Para eleger o herói são necessários recursos, aliados, marketing, etc. e isso tudo que ser “pago” de alguma forma após as eleições. A corrupção pura é só a forma mais mesquinha e cruel de efetuar esse pagamento, mas existem outras. Essas outras formas são muito piores do que a corrupção pois têm amparo legal.

A gestão de uma cidade não precisa de vinte, trinta, ou em casos crônicos muito mais do que isso, Secretarias, Empresas Públicas, Autarquias, Conselhos remunerados, etc. O quadro fica muito pior quando vemos que cada um desses espaços é povoado por um batalhão de “aliados” que têm amparo legal para estar onde estão. Alguns poucos são bons, importantes e realmente trabalham em prol da cidade e outros, poucos também, nem sequer aparecem. Ambos os perfis são facilmente identificáveis. Porém, o problema real é que maioria não tem a competência necessária para estar onde está e só foram acomodados politicamente levando em conta dois critérios: salário e poder do cargo exercido. Estes são difíceis de ser identificados pois simulam ter a competência, se cercam por mais “aliados” e o único compromisso deles é se manter no cargo o máximo de tempo possível. Alguns dominam tão bem esta técnica que lá ficam por duas ou três décadas.

Outro efeito colateral ainda mais perverso se dá no funcionalismo público. A falta de perspectiva de crescimento no topo da carreira, já que os cargos do topo serão sempre ocupados por “aliados”, faz com que a vontade de trabalhar, normalmente alta no início da carreira, vá se deteriorando ao longo do tempo e cria situações em que ouvimos frases como “agora é esperar este governo acabar para ver o que vamos fazer”. Isso sempre acontece nos meses finais de um governo e “o que vamos fazer” só começa a ficar claro depois dos primeiros seis meses do governo seguinte. Ou seja, a cada transição joga-se fora um ano de trabalho que poderia ser muito produtivo. Claro que existem, uns poucos, funcionários públicos que não merecem estar onde estão e estes deveriam ser retirados do serviço público. Assim como existem, também não muitos, que nunca desistiram e fazem o serviço de um batalhão de pessoas, mas a maioria alterna períodos de alta produtividade, quando eventualmente aparece um governo que quer trabalhar, com períodos de manutenção da situação existente, seja ela qual for. Esses ciclos perversos são prejudiciais não só à cidade, mas também à vida e à carreira do servidor público.

A Inflexão

É necessário redefinir o Norte Verdadeiro da Gestão Pública. A mudança primordial é tirar o foco do político e colocar o foco na cidade. A proposta é um modelo de gestão centrado na Cidade e em seus habitantes, os Cidadãos.

A Proposta

Focar no cidadão significa repensar o governo baseado nas demandas reais do cidadão. Ir à realidade real para verificar o que é necessário fazer para melhorar a qualidade de vida de cada cidadão, procurar a causa raiz dos problemas e empreender ações que resolvam os problemas reais e tornem realidade concreta os anseios abstratos.

A tecnologia será forte aliada não só no mapeamento dos problemas, mas também como ferramenta metodológica e de apoio à tomada de decisões e, mais importante, de acompanhamento, aconselhamento e apoio da população.

Na gestão municipal a solução será a profissionalização, usando compliance e lean. Gestores, incluindo secretários, não serão cargos políticos que são trocados a cada troca de governante, serão cargos técnicos escolhidos através de processo seletivo a ser aplicado dentro e fora do funcionalismo público, priorizando os próprios quadros, mas eventualmente procurando profissionais no mercado. Estas pessoas terão metas e objetivos e serão constantemente avaliadas, não só pelos seus gestores, mas também por toda a população (tecnologia novamente) e serão de lá retiradas se não atenderem estas metas e não estiverem alinhadas com o Norte Verdadeiro. Os cargos políticos serão poucos e responsáveis somente pela implementação dos modelos e da visão estratégica do governante eleito.

Em uma gestão enxuta existirão somente três áreas de atenção na Prefeitura: Pessoas, Infraestrutura e Operação.

Pessoas atenderá todas as necessidades diretas dos cidadãos, como Saúde, Educação, Assistência Social, Inclusão, Esportes, Cultura, etc.

Infraestrutura atenderá à cidade. Criará e manterá condições para que a primeira área atenda corretamente o cidadão. Não existirá mais uma área da Prefeitura que cuide dos prédios dos centros de saúde e outra que cuide das escolas, assim como com segurança, parques, etc., como é no modelo atual, onde se gasta muito, de forma redundante e sem nenhuma convergência. Uma única área cuidará para que todos os ativos e bens públicos estejam sempre em perfeitas condições e que sejam utilizados de forma compartilhada e racional. A visão integrada permitirá que a segurança, a mobilidade, o saneamento e o planejamento urbano sejam úteis, consistentes e coordenados. Em resumo, uma única área cujo foco de atuação será manter a cidade bem cuidada, segura, funcionando e pronta para atender às demandas da população.

Operação cuidará da operação interna da administração: recursos humanos, compras, logística, etc. novamente eliminando redundâncias, incongruências e inconsistências entre as muitas Secretarias e órgãos hoje existentes.

Tudo regido e acompanhado por um Gestor Público técnico, sem mandato definido e que mantenha amparo no arcabouço jurídico. Tudo operado de forma integrada e apoiado fortemente pela tecnologia, através da qual o cidadão acompanhará em tempo real as decisões e os caminhos do governo. Ou seja, um modelo que se preocupa em entregar à cidade e ao cidadão o que precisam, querem e pedem, de forma transparente, interativa e atemporal.

O Político

Porém ainda é necessário que a Sociedade Civil e as Instituições estabelecidas na Cidade sejam ouvidas. É imprescindível ouvir a “voz rouca das ruas” para referenciar o pensamento coletivo da população que chega de forma não direta aos ouvidos dos seus representantes.

Ouvir é fundamental, mas a Cidade também tem que ter uma “voz” que a represente, tanto de forma figurativa quanto de forma oficial. Alguém que converse com a população e explique o que será feito e que também saiba como conversar e convencer os outros poderes e as outras esferas governamentais sobre o que deve ser feito e como deve ser feito.

Para que algumas ações possam acontecer será necessário repensar a legislação existente, não só municipal como também estadual e federal. Por exemplo, focar na cidade implica em reavaliar o pacto federativo, empoderando os municípios e permitindo que as receitas auferidas sejam efetivamente aplicadas no município, de acordo com as necessidades locais e demandas da população. Embora o pacto federativo seja uma mudança ampla e complexa, que envolve muitos atores, alguém precisa começar o processo de mudança. Por outro lado, a reconstrução do modelo mental de elaboração dos orçamentos municipais é factível e desejável e é por aí que podemos começar.

É indispensável que a cidade tenha uma vocação, que pode mudar ao longo dos anos, mas que precisa ser suportada e enaltecida. A Cidade precisa de Rumo.

Portanto, falta ainda um componente neste modelo, que é exatamente a figura política, ou seja, o Prefeito.

O Prefeito, amparado por uma estrutura confiável e totalmente operacional, estará desincumbido de se ocupar totalmente com os detalhes e entraves administrativos e com as recorrências da gestão, tendo então muito mais tempo para executar aquelas que são suas funções de fato: ouvir, entender, definir o rumo e criar condições para que inovações aconteçam e sejam implementadas na cidade.

A Conclusão

Com uma estrutura em camadas circulares, interligadas e coesas e centrada na cidade, findo o ciclo de um Prefeito a administração pública se verá somente sem a sua casca mais externa, ficando vulnerável e com rumo indefinido enquanto a mudança se processa, mas não terá interrupção e não pairarão dúvidas nos administradores sobre a continuidade da execução dos serviços essenciais e que são independentes da visão política do Prefeito.

A cidade, o cidadão, a Sociedade Civil, as Instituições e tudo o mais que não tem que seguir um ciclo de quatro anos continua a funcionar plenamente.

Tudo sempre fortemente amparado pelo uso ostensivo e intensivo da tecnologia.

O Prefeito atento e orientado ao rumo da cidade e à sua vocação permite que o foco e atuação dos gestores públicos seja direcionada exclusivamente para o que realmente justifica a existência do poder público: o cidadão.

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